Um Conto
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Sempre há um conto a mais!


A casa

A descrição como forma narrativa!

A descrição não tem por finalidade apresentar todos os detalhes que compõem o objeto observado, mas fundamentalmente transmitir uma determinada impressão. Ela constitui um excelente recurso a ser utilizado dentro de um texto narrativo, porque é responsável pela utilidade e expressividade da narração. Pois consegue ciar toda a atmosfera dramática e afetiva do texto.

As ações, sempre que possível, partem do que é comum, trivial, para uma particularização, que só este conto tem – isso atrai o interesse, desperta a curiosidade, provoca um gosto de aventura.


A casa


A chuva escorria pelo ar, fazendo as árvores curvarem-se numa tristeza profunda. O vento raivoso e forte jogava água contra o mato, rasgando galhos e aniquilando folhas ao chão. O céu era todo trevas.

As nuvens trocavam raios e rajadas, fazendo o coração bater cada vez mais forte no peito. A existência, tudo medo.

A água fria caía no corpo provocando um arrepio que intensificava no compasso dos estrondos e clarões. Só se podia escutar o som da chuva num eterno chiar. Uma tempestade desnorteadora que o fazia tatear rumos no luto da noite.

Além do frio crescendo pelo corpo inteiro, espremendo os poros, podia sentir o salpicar da lama nas canelas. As roupas não mais protegiam-lhe do vento; a camiseta já confundida com a pele, contraindo os músculos como se fossem explodir de rigidez.

Descalço, procurando lugar onde pisar naquela terra sabosa que esmagava entre dedos petrificados, andava sem direção. A caminhada toda era deserta. Somente as luzes do céu mostravam um pouco de chão. Os dentes já se mordiam com mais fome de vida. Esvaziava nela a alucinante luta contra a natureza.

Quando parecia perder o último sopro, avista uma casa.

Atirando-se contra o portão apodrecido pelo tempo, invade o pequeno território como única esperança. Chegando à porta, numa agressão covarde, esmurra fortemente, procurando ali dentro a salvação da alma.

A casa velha e esquecida de gente. Paredes mudas. Aberturas encerrando eternidade.

O pavor - de ser o animal vivo diante da morte - rasga as entranhas, esmagando no interior do peito um anseio. O corpo parece abandonado diante de uma porta que talvez nunca abra. Os olhos pregados d'água conseguem ver fantasmas ao redor. Fim de vida ou início da morte - que importa a quem está esperando no só e assustador momento?

Rasgando-se, a entrada abre.

A figura de uma velha surpreendida com o desfigurado visitante aparece diante dele. Fitam-se.

- Entre. Saia da chuva.

A casa dá o calor que procurava. E parado, separando as gotas de água que escorrem dos cabelos, olha em todas as dimensões internas como se enxergasse imagens nas paredes. O cheiro de mofo, as luzes enfraquecidas.

A velha serve-lhe um cheiroso caldo de carne.

- Toma! Bebe isto primeiro; está bem quentinho. As tuas palavras ainda não foram recuperadas, mas o teu olhar já me satisfaz; tem vida.

Ela vira-se para uma das portas internas e chama por alguém.

- Este é o meu neto. Ele vai levá-lo para vestir roupas secas.

No quarto de luz enferrujada, as pegajosas roupas são trocadas. O corpo gelado e úmido pôs-se nu. Enquanto o rapaz estuda-o com olhares furtivos. Apanha sobre a cama a veste que lhe fora entregue.

- As roupas lhe serviram bem.

Durante o jantar cruzam-se olhares, porque não haviam palavras. Parece que o que cada um queria, estava ali e não precisa ser dito.

A velha sai, com seus afazeres, para o interior da casa. Um silêncio continuado se faz no tempo: nem chuva nem vento; só o estalar das brasas no fogão e de quando em quando uma goteira que se atrevia lá fora.

Sentados à mesa sem nada dizer. Às vezes o rapaz rasgava um ou outro olhar encabulado. As brasas continuavam levantando chamas, observadas através da portinhola do fogão de lenha.

Lá dentro do fogo estavam os olhos do moço, quando as palavras foram atiradas contra o silêncio, pois a curiosidade é uma presença que provoca o pensamento e desorganiza a matéria.

- Qual é mesmo o teu nome?

É natural perguntar-se pelo nome de quem pouco se sabe e isto parece mais natural ainda quando não se tem o que dizer.

Respondeu ele, antes de aventurar-se numa pergunta. - Vocês moram há muito tempo aqui?

- Toda a minha vida (riu-se). Eu não gosto muito daqui. Não tenho companhia. Às vezes é que vem uma ou outra pessoa aqui...

A velha volta, dizendo que preparou-lhe o quarto.

Na manhã seguinte não havia mais nada. A chuva acabara. Pelas frestas da janela via-se uma branca claridade, como se o sol quisesse entrar. Da cozinha vinha um barulho de facas, havia um movimento de quem preparava algo. As paredes daquele quarto agora se faziam visíveis. No teto uma aranha ainda trabalhava. Quando buscou pelas mãos, percebe que está amarrado como um cordeiro que será sacrificado.

O rapaz entra no quarto com o mesmo sorriso. Pergunta-lhe se gostou da janta na noite anterior.

- Pois hoje é a sua vez de nos dar alimento.

Lá de dentro a voz da velha diz:

- Pode trazê-lo!

A casa ainda existe e sempre existiu, abandonada no mato. Esperando uma vítima, paciente como uma aranha em sua teia. Dizem que nela morou uma bruxa, por isso ninguém se aproxima dela nem durante o dia e muito menos à noite. E dizem mais, que no primeiro dia de cada ano, acontece um grande baile na casa, em que todas as almas que por ali passaram, dançam até o amanhecer.

Mas isso... É o que dizem!

Sempre há um conto a mais!

Um conto há mais

Osvaldo C. de S. Andrade