Um Conto
Há mais

Sempre há um conto a mais!

Cunhado

Sentimentos humanos traz veracidade à ficção

O ser humano se assemelha a um aparelho fotográfico extremamente sensível, capaz de registrar suas impressões e suas emoções diante da realidade exterior. Em toda narrativa há sempre descrição. É que, ao lado do relato das ações e acontecimentos, figuram habitualmente as representações.

As passagens descritivas intercaladas numa narrativa podem ter muitas funções, desde a decorativa até as mais significativas caracterizações. O corte de cena intercalando ambientes traz para o texto uma sequência de situações que vão enriquecendo a compreensão dos fatos. O predomínio da paixão, do afeto utiliza ações que abalam os sentimentos mais humanos.


Cunhado

1

As sombras esticadas pela primeira luz nas casas cruzavam a calçada, donde ouvia-se um pipocar dos pés de alguém que atendia ao chamado do sino. Desta forma, todas manhãs de domingo, despertavam.

A casa guardava, ainda no leito, entre cobertores, retorcendo-se em últimos bocejos o corpo adolescente que fingia dormir. Esperava ser acordado como costumeiramente. Rotina que não seria quebrada principalmente hoje. Questão de tempo...

As outras pessoas da casa encontravam-se de pé. A conversa vinda da cozinha denunciava isso.

Num instante repentino, o oponente invade o quarto removendo panos e travesseiros. Braços e pernas são confusos numa luta de amigos; rasgando altas gargalhadas.

Entre os risos e movimentos num ambiente semi-escuro, a irmã aparece.

- Vamos, parem com isso... o café já está na mesa.

- Maninha! Hoje eu estou muito feliz. E o dia como está lá fora? Não responde. Deixa eu adivinhar. O sol brilhando forte... passarinhos e borboletas no ar...

- Deixa de bobagens, Augusto! (Intervém ela às chulices do irmão) Levanta rápido. Para quem ia levantar às seis horas, já está muito atrasado.

- É, cara! (Diz o outro) Vai tomar teu banho, e vê se não demora muito.

À mesa o café. A família: avó sentada à cabeceira da velha mesa de louro coberta por fina toalha de linho branco; de um lado o pai e provavelmente a tia, não fosse o compromisso com a igreja; do outro lado a filha trocando gentilezas com o apaixonado marido.

Entre os minutos marcados pelo relógio da parede, Augusto aparece perguntando por peças de roupa para vestir. O envaidecido rapaz vinha várias vezes à cozinha, com uma toalha presa na cintura. Exibe um peito inflado diante do espelho do corredor, que sempre foi espectador de inúmeras consultas.

Ao terminar do banho, volta perguntando pela hora.

- Augusto, vai te pentear no banheiro. Estás molhando todo o chão (Diz a irmã).

- Olhe só a força destes músculos!

- Um verdadeiro Hércules! (Diz o outro através de um curto sorrir).

- Não! Não... Agarra aqui no meu braço...

A vó, que não deixa escapar uma advertência, reclama em alta voz:

- Volta já pro banheiro e vai te secar. Veste uma roupa pra tomar o café.

Uma ordem obedecida sem resistência.

O pai, todavia, orgulhoso do filho que tem, não deixa passar a oportunidade para tecer elogios.

- Ele tem um corpo bem formado. Não é por ser meu filho, mas é um homenzinho que deixa muita guria com água na boca.

- Pai coruja! (Diz o outro entre um gole de café e um pedaço de pão).

Minutos a mais, o rapaz retorna.

- Vê se desta vez não derrama o leite na toalha, ela está limpinha.

- Tá vó, fica tranquila.

- Não fica nervosa! (Diz entre dentes o outro, beijando a esposa).

Embora o rapaz se mostrasse cuidadoso com os objetos da mesa, deixou pingar na alva toalha algumas gotas de café.

- Miserável! Tu não toma jeito mesmo. Olha o que fez.

- Ora, mamãe! (Intervém o pai) Não se zangue por isso. A euforia dele é porque vai acampar.

- É! Vão se divertir, enquanto aqui em casa ainda tem muito trabalho a fazer.

- Vó! Eu já falei com o Bem e assim que voltarem, a grama será aparada. É prometido!

- É, vozinha! E vamos pintar o muro.

A velha parece que responde com um som gutural, arrancado com possível dúvida.

- Ora, vó! O Bem e o Augusto vêm planejando esse acampamento a muito tempo. É esse o motivo de tanta alegria; a senhora sabe que o mano não sai de casa a muito.

Depois do familiar café, põem as mochilas nas costas e querem partir.

- Onde está a tia?

- Onde poderia estar? Na igreja. Ela não pode ouvir aquele sino que já tem de ir. Não sei em que errei quando criei esses dois. Vê o teu pai, é o oposto da tua tia, nem sequer acredita em Deus. Só procura os amigos do bar.

- Mamãe! Não vamos falar sobre isso agora. Vão! Vão e divirtam-se.

A vó pergunta à neta porquê não vai junto com o marido e o irmão. - Pensei que tu fosse.

- Eu prefiro não ir desta vez, eles vão muito longe.

Os dois partem espichando acenos até a esquina, enquanto frente a casa ficam os outros, respondendo aos sinais.

Sempre há um conto a mais!

Um conto há mais

Osvaldo C. de S. Andrade