Literatura

Arte que usa a palavra como forma de expressão!

Auto

Auto da Lusitânia

Fragmento do "Auto da Lusitânia", no qual se trava um interessante diálogo entre Todo o Mundo, rico mercador que procura alguma coisa perdida, e Ninguém, pobre mas cheio de sabedoria. Berzebu e Dinato são dois diabos que escutam e anotam tudo.

AUTO DA LUSITÂNIA

TODO O MUNDO E NINGUÉM - século XVI

Entra Todo o Mundo, homem como rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que se lhe perdeu; e logo após ele um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém, e diz:

Ninguém
- Que andas tu aí buscando?

Todo o Mundo
- Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando perfiando,
por quão bom é perfiar.

Ninguém
Como hás nome, cavalheiro?

Todo o Mundo
Eu hei nome Todo o Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro,
e sempre nisto me fundo.

Ninguém
E eu hei nome Ninguém,
E busco a consciência
(Berzebu para Dinato)
Esta é boa experiência!
Dinato, escreve isto bem.

Dinato
Que escreverei, companheiro?

Berzebu
Que Ninguém busca consciência,
e Todo o Mundo dinheiro.
(Ninguém para Todo o Mundo)

Ninguém
E agora que buscas lá?

Todo o Mundo
Busco honra muito grande.

Ninguém
E eu virtude, que Deus mande
que tope co ela já.
(Berzebu para Dinato)

Berzebu
Outra adição nos acude:
escreve aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo,
e Ninguém busca virtude.

Ninguém
Buscas outro mor bem qu’esse?

Todo o Mundo
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.

Ninguém
E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
(Berzebu para Dinato)

Berzebu
Escreve mais.

Dinato
Que tens sabido?

Berzebu
Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
(Ninguém para Todo o Mundo)

Ninguém
Buscas mais, amigo meu?

Todo o Mundo
Busco a vida e quem ma dê.

Ninguém
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
(Berzebu para Dinato)

Berzebu
Escreve lá outra sorte.

Dinato
Que sorte?

Berzebu
Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida,
e Ninguém conhece a morte.
(Todo o Mundo para Ninguém)

Todo o Mundo
E mais queria o paraíso,
sem mo ninguém estorvar.

Ninguém
E eu ponho-me a pagar
quanto devo pera isso.
(Berzebu para Dinato)

Berzebu
Escreve com muito aviso.

Dinato
Que escreverei?

Berzebu
Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso,
e Ninguém paga o que deve.
(Todo o Mundo para Ninguém)

Todo o Mundo
Folgo muito d’enganar,
e mentir nasceu comigo.

Ninguém
Eu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar.
(Berzebu para Dinato)

Berzebu
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso!

Dinato
Quê?

Berzebu
Que Todo o Mundo é mentiroso
e Ninguém diz a verdade.
(Ninguém para Todo o Mundo)

Ninguém
Que mais buscas?

Todo o Mundo
Lisonjear.

Ninguém
Eu sou todo desengano.
(Berzebu para Dinato)

Berzebu
Escreve, anda la mano!

Dinato
Que me mandas assentar?

Berzebu
Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.

VICENTE, Gil. Auto da Lusitânia. In:__. Teatro. Lisboa, Portugal, 1959, p.305-8.

» Você pode contribuir com o site.
Pix: 26328003072

Necessário para quem deseja vencer!

Ensino com Tecnologia

Professor
Osvaldo Andrade