Sempre há um conto a mais!
Muito tempo passou até que eu começasse a perceber - quase dois anos. Várias coisas ainda eram confusas e às vezes a dor voltava, porém já me dava por gente. Reconhecia o sabor dos bolinhos trazidos por Dona Eunice em suas visitas eventuais.
Foi neste período, de restabelecimento, que conheci Josias: padre um tanto circunspecto que preenchia seus dias com o cultivo de plantas e estudos de botânica. Ponderações bastante aluadas, bem características do lugar; as quais tinham em mim o espectador preferencial. Talvez por minha constante atenção silenciosa. Não entendia nada, mas fingia acompanhar tudo. Pois eu confundia por vezes as próprias pernas, como assimilar suas difíceis teorias - pelo menos as achava difíceis.
Com os meses, ganhei maior segurança e saúde. Passei a me interessar pela Botânica de Josias. O que antes só concordava, passei a contestar; já possuía ideias, pontos de vista. Encontrava nele um bom amigo para atravessar um mundo tão vazio.
Dona Eunice e seus bolinhos nunca mais apareceram no jardim de sempre, com o seu sorriso materno e as gordas mãos segurando o embrulho. Falava-me com doçura, parecendo compreender a minha distância do mundo. Contava novidades e lembranças. Servia seus bolinhos ali mesmo, quando sentávamos num daqueles bancos. No entanto havia sumido. Chequei a pensar que tivesse morrido e queriam poupar-me.
As orações repetiam-se dia após dia, servidas com o café da manhã e ao deitar-se. Todos os dias eram iguais, ou quase iguais, uma ou outra coisa ganhava um caminho diferente.
- Sabe Josias, já plantei e replantei nos vasos. Nem sei quantas vezes vi as flores nascer e morrer... Acho que nunca estaremos prontos para ganhar o mundo lá fora.
- Meu amigo! Eu também pensava assim no princípio...
Antes que eu perguntasse, foi logo me falando.
- Dezesseis anos. E pensando bem, acho que não importa ficar aqui ou lá fora... E nem tu tão pouco deves preocupar-te com isso. O que fazias lá fora?
- Não entendi?!
- Ora! Tu não passavas de um ritualista, celebrando nascimentos e mortes, não era? Pois, o mesmo fazes aqui, no jardim.
A observação de Josias perturbou-me muito. Não sei porquê, mas passei a pensar nas palavras do amigo. E foi em um momento de oração que comecei a refletir. Enquanto a missa era rezada, eu pensava em Josias e suas palavras: sobre as plantas... sobre as pessoas... Quantas batizei? Tantas enterrei! E lembrei do que disse-me um dia: "A verdade está aqui, agora e entre nós; por que a jogamos constantemente fora de nosso alcance? Por que devemos uns traçar o caminho dos outros? Guiar vidas pelas nossas cegueiras! Devemos deixar as sementes brotarem onde forem lançadas. É dessas que nascem as árvores mais verdadeiras". Lembro que falei não compreender. Ele olhou-me paternalmente e perguntou: "Se uma mãe dá a luz a um filho, deve ela marcá-lo com algum sinal para que ele saiba que é filho, se já o é por nascimento?".
- Meu Deus.
Pude ouvir o eco da minha voz alta e vigorante dentro da capela, enquanto todos me olhavam com censura. Baixei a cabeça permanecendo calado o tempo todo. Não sei quanto tempo, nem mesmo quando tudo acabou. Não pensava em nada, só estava ali; olhando duas formigas que conversavam; quando alguém me tocou no ombro. Era Josias.
- Vem! Quero mostrar-te uma coisa.
E mais uma vez saímos para cuidar das plantas. Aquilo tudo me fazia inquieto. Todos os dias as mesmas coisas. Plantas, orações... plantas, orações.