Sempre há um conto a mais!
O jardim era um mundo maravilhoso, rico em vidas; no entanto um mundo que não mais me interessava. Já o conhecia muito - era capaz de cumprimentar os insetos todos pelo nome de cada um.
Lembrei de que um dia fui enviar a alma de um dos fiéis. Estava toda a família reunida na sala em torno do caixão. A mãe do morto soluçava, os irmãos cheiravam vingança, o pai aborrecido acalentava o rosto da pobre mulher. Os parentes e amigos sentidos. Ele havia morrido por uma navalha. Numa briga alguém puxara uma navalha e retalhou-lhe o corpo. Era um rapaz jovem, trabalhador - saía cedo para o serviço e só voltava com o fim do sol. Nesse dia fora atacado no caminho, onde aconteceu a briga. Eu entreguei sua alma. Conformei a família e voltei para a igreja. Ainda deveria atender a outra de minhas ovelhas.
O bom pastor sabe rebanhar suas ovelhas, guiá-las por saldáveis pastos... o pastor... ovelhas...
As aulas de botânica de Joias havia me aberto os olhos para um mundo que antes não via. Pois, recordo-me que certo dia estava no pomar caminhando só, quando parei abaixo de uma laranjeira para observar as formigas que caminhavam nos galhos. Elas pareciam pastores com seu rebanho. Nos ramos mais novos guardavam suas ovelhas: eram afídeos que pastavam.
Disse-me Josias, um dia, que as formigas são caçadores que aprisionam afídeos e leiteiros que ordenham esses pulgões. Alimentam-se deles.
Fui um pastor arrebanhando almas, cuidando de milhares de ovelhas para o Senhor. Não pude deixar de me lembrar desses insetos.
Sentia-me agora uma ovelha pastoreada. Os muros eram altos, o jardim enorme; a casa grande e iluminada. Era-se vigiado o tempo todo - homens de branco nos longos corredores e no pátio.
Como eu não dava trabalho a eles porque passava maior parte conversando com o amigo Josias, não me davam remédios como antes. Só observavam-nos de longe. O tempo sumia nos dias e eu passando...
Num final de tarde, sentamos eu e Josias num recanto de jardim. No céu os dois astros, um vermelho em luz, outro amarelo de sol.
A noite ainda não era feita, as sombras se espichavam do poente e os insetos tocavam-se no ar. Sentamos para conversar sobre a existência, e esta foi a última vez que fizemos isso.
Josias morre num desses dias iguais e fico só.
Mandam-me arrumar o quarto dele. Encontro sua bíblia com anotações e leio. Dentre as páginas, encontro um recorte de jornal. É o meu retrato que vejo. Fala sobre uma pesquisa que eu estava fazendo. Agora lembro o que era! Passava noites estudando nos livros antigos. Lembro que quase adoeci, porém nunca encontrei a resposta para minhas perguntas. Nada esteve escrito lá. As notas de Josias começavam a me responder.
Dentro do quarto, prisioneiro do saber, como contar tudo que descobri. Compreendo o que ele queria me dizer. Entendo todas as suas aulas de botânica.
O corpo lá está, sendo preparado e eu aqui... O que fazer? Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois vier a perder sua alma? Josias sempre foi muito inteligente. Sempre soube de toda a verdade. Diziam que ele não era certo da cabeça. Por se negar a agir conforme os preceitos da entidade, o prenderam nesta casa. E agora?
- O importante é esconder as notas de Josias. Ninguém daqui pode ler isto.